ANO B 4º DOMINGO DO TEMPO DA QUARESMA

18-03-2012 00:00

Tema do 4º Domingo da Quaresma

A liturgia do 4º Domingo da Quaresma garante-nos que Deus nos oferece, de forma totalmente gratuita e incondicional, a vida eterna.
A primeira leitura diz-nos que, quando o homem prescinde de Deus e escolhe caminhos de egoísmo e de auto-suficiência, está a construir um futuro marcado por horizontes de dor e de morte. No entanto, diz o autor do Livro das Crónicas, Deus dá sempre ao seu Povo outra possibilidade de recomeçar, de refazer o caminho da esperança e da vida nova.
A segunda leitura ensina que Deus ama o homem com um amor total, incondicional, desmedido; é esse amor que levanta o homem da sua condição de finitude e debilidade e que lhe oferece esse mundo novo de vida plena e de felicidade sem fim que está no horizonte final da nossa existência.
No Evangelho, João recorda-nos que Deus nos amou de tal forma que enviou o seu Filho único ao nosso encontro para nos oferecer a vida eterna. Somos convidados a olhar para Jesus, a aprender com Ele a lição do amor total, a percorrer com Ele o caminho da entrega e do dom da vida. É esse o caminho da salvação, da vida plena e definitiva.


LEITURA I – 2 Cr 36,14-16.19-23

Leitura do Segundo Livro das Crónicas

Naqueles dias,
todos os príncipes dos sacerdotes e o povo
multiplicaram as suas infidelidades,
imitando os costumes abomináveis das nações pagãs,
e profanaram o templo
que o Senhor tinha consagrado para Si em Jerusalém.
O Senhor, Deus de seus pais,
desde o princípio e sem cessar, enviou-lhes mensageiros,
pois queria poupar o povo e a sua própria morada.
Mas eles escarneciam dos mensageiros de Deus,
desprezavam as suas palavras e riam-se dos profetas,
a tal ponto que deixou de haver remédio,
perante a indignação do Senhor contra o seu povo.
Os caldeus incendiaram o templo de Deus,
demoliram as muralhas de Jerusalém.
Lançaram fogo aos seus palácios
e destruíram todos os objectos preciosos.
O rei dos caldeus deportou para Babilónia
todos os que tinham escapado ao fio da espada;
e foram escravos deles e de seus filhos,
até que se estabeleceu o reino dos persas.
Assim se cumpriu o que o Senhor anunciara pela boca de Jeremias:
«Enquanto o país não descontou os seus sábados,
esteve num sábado contínuo,
durante todo o tempo da sua desolação,
até que se completaram setenta anos».
No primeiro ano do reinado de Ciro, rei da Pérsia,
para se cumprir a palavra do Senhor,
pronunciada pela boca de Jeremias,
o Senhor inspirou Ciro, rei da Pérsia,
que mandou publicar, em todo o seu reino,
de viva voz e por escrito,
a seguinte proclamação:
«Assim fala Ciro, rei da Pérsia:
O Senhor, Deus do Céu, deu-me todos os reinos da terra
e Ele próprio me confiou o encargo
de Lhe construir um templo em Jerusalém, na terra de Judá.
Quem de entre vós fizer parte do seu povo ponha-se a caminho
e que Deus esteja com ele».

AMBIENTE

O Livro das Crónicas é uma obra de um autor anónimo, que pretende oferecer a história de Israel, desde a criação do mundo, até à época do Exílio. A tradição judaica atribui a obra a Esdras; mas tal hipótese não é provável. O livro faz parte de um bloco com alguma unidade (em conjunto com os livros de Esdras e de Neemias) que se costuma designar como “Obra do Cronista”.
Os investigadores e comentadores do Livro das Crónicas propõem várias hipóteses para a datação da obra (as diversas propostas apontam para datas entre 515 a.C. e 250 a.C.). Recentemente, alguns autores falam de um processo em várias etapas… À volta de 515 a.C. poderia ter aparecido uma primeira edição da obra, com a finalidade de legitimar o culto no “segundo Templo” (isto é, no Templo reconstruído pelos judeus regressados do Exílio na Babilónia); entre 400 e 375 a.C., poderia ter aparecido uma segunda edição, destinada a sublinhar a autoridade de Esdras como legislador e intérprete da Torah; entre 350 e 300 a.C., poderia ter aparecido uma terceira edição, destinada a animar, a fortalecer e a consolidar a comunidade judaica frente à hostilidade dos vizinhos, particularmente dos samaritanos.
O texto que nos é proposto aparece na parte final do segundo volume do Livro das Crónicas. Neste texto, o Cronista refere dois factos históricos separados por quase 50 anos: a queda de Jerusalém nas mãos de Nabucodonosor (586 a.C.) e a autorização dada pelo rei persa Ciro para o regresso dos exilados a Jerusalém, após a queda da Babilónia (538 a.C.). Pelo meio, o Povo de Deus conheceu a dramática experiência do Exílio na Babilónia.
Contudo, o autor está muito mais interessado em dar-nos uma interpretação teológica dos factos do que em oferecer-nos uma descrição pormenorizada dos acontecimentos históricos. Não é um historiador ou um analista político a falar, mas sim um crente preocupado em ler a história à luz da fé e em tirar daí as conclusões que se impõem.

MENSAGEM

A destruição de Jerusalém, o incêndio do Templo e a deportação do Povo de Deus para a Babilónia são vistas pelo Cronista como o resultado lógico dos pecados da nação. “Os chefes de Judá, os sacerdotes e o Povo multiplicaram as suas infidelidades” (vers. 14); ignoraram os avisos enviados por Deus por intermédio dos profetas e desdenharam os seus apelos… Então, a ira do Senhor abateu-se sem remédio sobre o seu Povo (vers. 15-16). O próprio tempo que o Exílio durou (e que o autor situa num número não muito exacto mas simbólico de 70 anos – isto é, de dez vezes sete) é visto como um grande jubileu forçado por Deus, um tempo de compensação por todos esses sábados (sétimos dias) que o Povo não respeitou e nos quais não cumpriu as suas obrigações para com Jahwéh. A “terra de Deus”, martirizada pela injustiça e pelo pecado, deve descansar durante setenta anos, até que seja renovada e volte a ser de novo a “casa” do Povo de Deus (vers. 21).
Por detrás desta leitura da história, está uma noção um tanto ou quanto primitiva da justiça de Deus: quando o Povo vive na fidelidade à Aliança e aos mandamentos, Deus oferece-lhe vida e felicidade; quando o Povo é infiel aos compromissos assumidos, conhece morte e desgraça.
De qualquer forma, o Cronista está consciente de que o castigo não é a última palavra de Deus. Os últimos versículos (vers. 22-23 – que são uma versão resumida de Esd 1,1-4) apontam no sentido da esperança e de um recomeço. Por detrás da referência à libertação operada por Ciro e ao édito que autoriza os habitantes de Judá a regressar à sua terra, está a ideia de um Deus que não abandona o seu Povo e que continua a dar-lhe, em cada momento da história, a possibilidade de recomeçar.

ACTUALIZAÇÃO

• A teologia da retribuição apresentada pelo Cronista (a fidelidade a Deus é recompensada com vida e bênção; a infidelidade é castigada com sofrimento e desgraça) tem, evidentemente, as suas limitações e os seus perigos. Levada às últimas consequências, pode sugerir que Deus é apenas um comerciante preocupado em fazer a contabilidade dos débitos e dos créditos do homem, incapaz de amor e de misericórdia. O Evangelho deste domingo virá, precisamente, demonstrar os limites desta perspectiva e apresentar um Deus que, embora abominando o pecado, ama o homem para além de toda a medida e está sempre disposto a oferecer-lhe a vida e a salvação.

• Embora usando elementos teológicos e formas de expressão típicas de uma época, o Cronista recorda-nos, no entanto, algo que é indesmentível: quando o homem prescinde de Deus e escolhe caminhos de egoísmo e de auto-suficiência, está a construir um futuro marcado por horizontes de dor e de morte. Na verdade, a nossa experiência de todos os dias mostra como a indiferença do homem face a Deus e às suas propostas gera violência, opressão, exploração, exclusão, sofrimento. Na leitura que o Cronista faz da história do seu Povo, há um convite claro a escutar Deus e a pautar as opções que fazemos pelas propostas de Deus.

• A perspectiva de que a libertação do cativeiro é comandada por Deus e de que Deus oferece ao seu Povo a oportunidade de um novo começo, aponta no sentido da esperança. Cá está: o Deus que nos é proposto é um Deus que abomina o pecado, mas que dá sempre aos seus filhos a oportunidade de recomeçar, de refazer tudo, de refazer o caminho da esperança e da vida nova. Neste tempo de Quaresma, este texto abre-nos horizontes de esperança e convida-nos a embarcar na apaixonante aventura da vida nova.


SALMO RESPONSORIAL – Salmo 136 (137)

Refrão: Se eu me não lembrar de ti, Jerusalém,
fique presa a minha língua.

Sobre os rios de Babilónia nos sentámos a chorar,
com saudades de Sião.
Nos salgueiros das suas margens,
dependurámos nossas harpas.

Aqueles que nos levaram cativos
queriam ouvir os nossos cânticos
e os nossos opressores uma canção de alegria:
«Cantai-nos um cântico de Sião».

Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor
em terra estrangeira?
Se eu me esquecer de ti, Jerusalém,
esquecida fique a minha mão direita.

Apegue-se-me a língua ao paladar,
se não me lembrar de ti,
se não fizer de Jerusalém
a maior das minhas alegrias.


LEITURA II – Ef 2,4-10

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Efésios

Irmãos:
Deus, que é rico em misericórdia,
pela grande caridade com que nos amou,
a nós, que estávamos mortos por causa dos nossos pecados,
restituiu-nos à vida em Cristo
– é pela graça que fostes salvos –
e com Ele nos ressuscitou
e nos fez sentar nos Céus com Cristo Jesus,
para mostrar aos séculos futuros
a abundante riqueza da sua graça
e da sua bondade para connosco, em Cristo Jesus.
De facto, é pela graça que fostes salvos, por meio da fé.
A salvação não vem de vós: é dom de Deus.
Não se deve às obras: ninguém se pode gloriar.
Na verdade, nós somos obra sua, criados em Cristo Jesus,
em vista das boas obras que Deus de antemão preparou,
como caminho que devemos seguir.

AMBIENTE

A cidade de Éfeso estava situada na costa ocidental da Ásia Menor. Era uma cidade grande e próspera, capital da Província Romana da Ásia. O seu porto de mar ligava o interior da Ásia Menor com todas as cidades do Mediterrâneo.
Quando Paulo chegou a Éfeso (cf. Act 19,1), durante a sua terceira viagem missionária, encontrou alguns cristãos escassamente preparados. Paulo instruiu-os e formou com eles uma comunidade cristã. De acordo com o Livro dos Actos dos Apóstolos, Paulo permaneceu na cidade durante um longo período (mais de dois anos, segundo Act 19,10), ensinando na sinagoga e, depois, na “escola de Tirano” (Act 19,9). Assim, reuniu à sua volta um número considerável de pessoas convertidas ao “Caminho” (Act 19,9.23). Ainda de acordo com Lucas, foi aos anciãos da Igreja de Éfeso que Paulo confiou, em Mileto (cf. Act 20,17-38), o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral, antes de ir a Jerusalém, onde acabaria por ser preso. Tudo isto faz supor uma relação muito estreita entre Paulo e a comunidade cristã de Éfeso. Curiosamente, a carta aos Efésios é bastante impessoal e não reflecte essa relação. Alguns dos comentadores dos textos paulinos duvidam, por isso, que esta carta venha de Paulo. Outros, porém, acreditam que o texto que chegou até nós com o nome de “Carta aos Efésios” é um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor – inclusive à comunidade cristã de Éfeso.
Em qualquer caso, a Carta aos Efésios apresenta-se como uma carta escrita por Paulo, numa altura em que o apóstolo está na prisão (em Roma?). O seu portador teria sido um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60. Trata-se de um texto com uma grande riqueza temática, de uma reflexão amadurecida e completa onde o autor apresenta uma espécie de síntese da teologia paulina.
O texto que nos é proposto integra a parte dogmática da carta (cf. Ef 1,3-3,21). Mais concretamente, o texto apresenta-nos uma reflexão sobre o papel de Cristo na salvação do homem. O ponto de partida do autor da Carta aos Efésios é a constatação da situação de pecado em que o homem vive e da qual, por si só, não pode sair. O homem estará, portanto, condenado à escravidão do pecado e à morte?

MENSAGEM

Deus é rico em misericórdia e ama o homem com um amor imenso. Por isso, à situação pecadora do homem, Deus responde com a sua graça (vers. 4). O amor salvador e libertador de Deus não é um amor condicional, que só se derrama sobre o homem se e quando o homem se converte; mas é um amor incondicional, que atinge o homem mesmo quando ele continua a percorrer caminhos de pecado e de morte (vers. 5).
A esse homem orgulhoso e auto-suficiente, instalado no egoísmo e no pecado, Deus ofereceu uma nova vida, ressuscitando-o e sentando-o com Cristo no céu (“nos ressuscitou e nos fez sentar no céu com Cristo Jesus” – vers. 6). Repare-se neste pormenor: o autor da Carta aos Efésios não se refere à ressurreição do homem e à sua glorificação como uma coisa futura, mas como uma coisa passada (ele usa o tempo grego do aoristo, que tem significado de passado). No entanto, essa acção passada afecta o presente e tem implicações no presente… Unido a Cristo, o cristão já ressuscitou e já foi glorificado; ele continua a viver na terra, sujeito à finitude e às limitações da vida presente mas é já, aqui e agora, um cidadão do céu. Na verdade, Deus já introduziu na débil e frágil natureza humana os dinamismos da vida eterna. A vida do cristão está, consequentemente, marcada pela dupla condição da fragilidade e da eternidade. Apesar dos seus limites e da sua debilidade, o cristão tem de testemunhar e anunciar essa vida nova que Deus já lhe ofereceu nesta terra.
Em toda esta exposição há um elemento incontornável e ao qual o autor da Carta aos Efésios dá uma grande importância: a gratuidade da acção salvadora de Deus. A salvação não é uma conquista do homem, nem resulta das obras ou dos méritos do homem, mas é puro dom de Deus. Portanto, não há aqui lugar para qualquer sentimento de orgulho ou para qualquer atitude de auto-glorificação. A salvação é uma oferta gratuita que Deus faz ao homem, mesmo que o homem não a mereça (vers. 9).
Da oferta de salvação que Deus faz ao homem, nasce um homem novo, que pratica boas obras. As boas obras não são a condição para se receber a salvação, mas o resultado da acção dessa graça que Deus, no seu amor e na sua bondade, derrama gratuitamente sobre o homem (vers. 10).

ACTUALIZAÇÃO

• A vida do homem sobre a terra está marcada pela debilidade, pela finitude, pelas limitações inerentes à nossa condição humana. A doença, o sofrimento, o egoísmo, o pecado são realidades que acompanham a nossa existência, que nos mantêm prisioneiros e que nos roubam a esperança. Parece que, por nós próprios, nunca conseguiremos superar os nossos limites e alcançar essa realidade de vida plena, de felicidade total com que permanentemente sonhamos. Por isso, certos filósofos contemporâneos referem-se à futilidade da existência, à náusea que acompanha a vida do homem, à inutilidade da busca da felicidade, ao fracasso que é a vida condenada à morte… Este quadro seria desesperante se não existisse o amor de Deus. É precisamente isso que o autor da Carta aos Efésios nos recorda: Deus ama-nos com um amor total, incondicional, desmedido; e é esse amor que nos levanta da nossa condição, que nos faz vencer os nossos limites, que nos oferece esse mundo novo de vida plena e de felicidade sem fim a que aspiramos. Não somos pobres criaturas derrotadas, condenadas ao fracasso, limitadas por um horizonte sem sentido, mas somos filhos amados a quem Deus oferece a vida plena, a salvação.

• Na verdade, Deus introduziu na nossa realidade humana dinamismos de superação e de vida nova que apontam para o homem novo, livre das limitações, da debilidade e da fragilidade. Aqueles homens e mulheres que acolheram o dom de Deus são chamados a dar testemunho de um mundo novo, livre do sofrimento, da injustiça, do egoísmo, do pecado. Por isso, os crentes têm de anunciar e de construir um mundo mais justo, mais fraterno, mais humano. Eles são testemunhas, nesta terra, de uma realidade nova de felicidade sem fim e de vida eterna.

• Muitas vezes, a vida nova de Deus manifesta-se nas nossas palavras, nos nossos gestos de partilha e de serviço, nas nossas atitudes de tolerância e de perdão e somos sinais de esperança e de libertação para os irmãos que nos rodeiam. Convém, no entanto, não esquecer este facto essencial: o mérito não é nosso, mas sim de Deus. É Deus que age no mundo, que o transforma, que o recria; nós somos, apenas, os instrumentos frágeis através dos quais Deus manifesta ao mundo e aos homens o seu amor.



 

EVANGELHO: Jo 3,14-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
disse Jesus a Nicodemos:
«Assim como Moisés elevou a serpente no deserto,
também o Filho do homem será elevado,
para que todo aquele que acredita n’Ele
não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus não enviou o Filho ao mundo
para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele.
Quem acredita n’Ele não é condenado,
mas quem não acredita já está condenado,
porque não acreditou em nome do Filho Unigénito de Deus.
E a causa da condenação é esta:
a luz veio ao mundo
e os homens amaram mais as trevas do que a luz,
porque eram más as suas obras.
Todo aquele que pratica más acções
odeia a luz e não se aproxima dela,
para que as suas obras não sejam denunciadas.
Mas quem pratica a verdade aproxima-se da luz,
para que as suas obras sejam manifestas,
pois são feitas em Deus.

AMBIENTE

O nosso texto pertence à secção introdutória do Quarto Evangelho (cf. Jo 1,19-3,36). Nessa secção, o autor apresenta Jesus e procura – através dos contributos dos diversos personagens que vão sucessivamente ocupando o centro do palco e declamando o seu texto – dizer quem é Jesus.
Mais concretamente, o trecho que nos é proposto faz parte da conversa entre Jesus e um “chefe dos judeus” chamado Nicodemos (cf. Jo 3,1). Nicodemos foi visitar Jesus “de noite” (cf. Jo 3,2), o que parece indicar que não se queria comprometer e arriscar a posição destacada de que gozava na estrutura religiosa judaica. Membro do Sinédrio, Nicodemos aparecerá, mais tarde, a defender Jesus, perante os chefes dos fariseus (cf. Jo 7,48-52). Também estará presente na altura em que Jesus foi descido da cruz e colocado no túmulo (cf. Jo 19,39).
A conversa entre Jesus e Nicodemos apresenta três etapas ou fases. Na primeira (cf. Jo 3,1-3), Nicodemos reconhece a autoridade de Jesus, graças às suas obras; mas Jesus acrescenta que isso não é suficiente: o essencial é reconhecer Jesus como o enviado do Pai. Na segunda (cf. Jo 3,4-8), Jesus anuncia a Nicodemos que, para entender a sua proposta, é preciso “nascer de Deus” e explica-lhe que esse novo nascimento é o nascimento “da água e do Espírito”. Na terceira (cf. Jo 3,9-21), Jesus descreve a Nicodemos o projecto de salvação de Deus: é uma iniciativa do Pai, tornada presente no mundo e na vida dos homens através do Filho e que se concretizará pela cruz/exaltação de Jesus. O nosso texto pertence a esta terceira parte.

MENSAGEM

No texto que nos é proposto, Jesus começa por explicar a Nicodemos que o Messias tem de “ser levantado ao alto”, como “Moisés levantou a serpente” no deserto (a referência evoca o episódio da caminhada pelo deserto quando os hebreus, mordidos pelas serpentes, olhavam uma serpente de bronze levantada num estandarte por Moisés e se curavam – cf. Nm 21,8-9). A imagem do “levantamento” de Jesus refere-se, naturalmente, à cruz – passo necessário para chegar à exaltação, à vida definitiva. É aí que Jesus manifesta o seu amor e que indica aos homens o caminho que eles devem percorrer para alcançar a salvação, a vida plena (vers. 14).
Aos homens é sugerido que acreditem no “Filho do Homem” levantado na cruz, para que não pereçam mas tenham a vida eterna. “Acreditar” no “Filho do Homem” significa aderir a Ele e à sua proposta de vida; significa aprender a lição do amor e fazer, como Jesus, dom total da própria vida a Deus e aos irmãos (vers. 15). É dessa forma que se chega à “vida eterna”.
Depois destas afirmações gerais, o autor do Quarto Evangelho vai entrar em afirmações mais detalhadas. O que é que significa, exactamente, a cruz de Jesus? Como é que a cruz gera vida definitiva para o homem?
Jesus, o “Filho único” enviado pelo Pai ao encontro dos homens para lhes trazer a vida definitiva, é o grande dom do amor de Deus à humanidade. A expressão “Filho único” evoca, provavelmente, o “sacrifício de Isaac” (cf. Gn 22,16): Deus comporta-se como Abraão, que foi capaz de desprender-se do próprio filho por amor (no caso de Abraão, amor a Deus; no caso de Deus, amor aos homens)… Jesus, o “Filho único” de Deus, veio ao mundo para cumprir os planos do Pai em favor dos homens. Para isso, incarnou na nossa história humana, correu o risco de assumir a nossa fragilidade, partilhou a nossa humanidade; e, como consequência de uma vida gasta a lutar contra as forças das trevas e da morte que escravizam os homens, foi preso, torturado e morto numa cruz. A cruz é o último acto de uma vida vivida no amor, na doação, na entrega. A cruz é, portanto, a expressão suprema do amor de Deus pelos homens. Ela dá-nos a dimensão do incomensurável amor de Deus por essa humanidade a quem Ele quer oferecer a salvação (vers. 16).
Qual é o objectivo de Deus ao enviar o seu Filho único ao encontro dos homens? É libertá-los do egoísmo, da escravidão, da alienação, da morte, e dar-lhes a vida eterna. Com Jesus – o “Filho único” que morreu na cruz – os homens aprendem que a vida definitiva está na obediência aos planos do Pai e no dom da vida aos irmãos, por amor.
Ao enviar ao mundo o seu “Filho único”, Deus não tinha uma intenção negativa, mas uma intenção positiva. O Messias não veio com uma missão judicial, nem veio excluir ninguém da salvação. Pelo contrário, Ele veio oferecer aos homens – a todos os homens – a vida definitiva, ensinando-os a amar sem medida e dando-lhes o Espírito que os transforma em Homens Novos (vers. 17).
Reparemos neste facto notável: Deus não enviou o seu Filho único ao encontro de homens perfeitos e santos; mas enviou o seu Filho único ao encontro de homens pecadores, egoístas, auto-suficientes, a fim de lhes apresentar uma nova proposta de vida… E foi o amor de Jesus – bem como o Espírito que Jesus deixou – que transformou esses homens egoístas, orgulhosos, auto-suficientes e os inseriu numa dinâmica de vida nova e plena.
Diante da oferta de salvação que Deus faz, o homem tem de fazer a sua escolha. Quando o homem aceita a proposta de Jesus e adere a Ele, escolhe a vida definitiva; mas quando o homem prefere continuar escravo de esquemas de egoísmo e de auto-suficiência, rejeita a proposta de Deus e auto-exclui-se da salvação. A salvação ou a condenação não são, nesta perspectiva, um prémio ou um castigo que Deus dá ao homem pelo seu bom ou mau comportamento; mas são o resultado da escolha livre do homem, face à oferta incondicional de salvação que Deus lhe faz. A responsabilidade pela vida definitiva ou pela morte eterna não recai, assim, sobre Deus, mas sobre o homem (vers. 18).
De acordo com a perspectiva de João, também não existe um julgamento futuro, no final dos tempos, no qual Deus pesa na sua balança os pecados dos homens, para ver se os há-de salvar ou condenar: o juízo realiza-se aqui e agora e depende da atitude que o homem assume diante da proposta de Jesus.
Na parte final do nosso texto (vers. 19-21), João repete o tema da opção pela vida (Jesus) ou pela morte. Ele constata que, por vezes, os homens rejeitam a proposta de Deus e preferem a escravidão e as trevas (o egoísmo, a injustiça, o orgulho, a auto-suficiência, tudo o que torna o homem infeliz e lhe impede o acesso à vida definitiva). Ao contrário, quem pratica as obras do amor (as obras de Jesus), escolhe a luz, identifica-se com Deus e dá testemunho de Deus no meio do mundo.
Em resumo: porque amava a humanidade, Deus enviou o seu Filho único ao mundo com uma proposta de salvação. Essa oferta nunca foi retirada; continua aberta e à espera de resposta. Diante da oferta de Deus, o homem pode escolher a vida eterna, ou pode excluir-se da salvação.

ACTUALIZAÇÃO

Na reflexão, considerar os seguintes pontos:

• João é o evangelista abismado na contemplação do amor de um Deus que não hesitou em enviar ao mundo o seu Filho, o seu único Filho, para apresentar aos homens uma proposta de felicidade plena, de vida definitiva; e Jesus, o Filho, cumprindo o mandato do Pai, fez da sua vida um dom, até à morte na cruz, para mostrar aos homens o “caminho” da vida eterna… O Evangelho deste domingo convida-nos a contemplar, com João, esta incrível história de amor e a espantar-nos com o peso que nós – seres limitados e finitos, pequenos grãos de pó na imensidão das galáxias – adquirimos nos esquemas, nos projectos e no coração de Deus.

• O amor de Deus traduz-se na oferta ao homem de vida plena e definitiva. É uma oferta gratuita, incondicional, absoluta, válida para sempre e que não discrimina ninguém. Aos homens – dotados de liberdade e de capacidade de opção – compete decidir se aceitam ou se rejeitam o dom de Deus. Às vezes, os homens acusam Deus pelas guerras, pelas injustiças, pelas arbitrariedades que trazem sofrimento e morte que pintam as paredes do mundo com a cor do desespero… O nosso texto, contudo, é claro: Deus ama o homem e oferece-lhe a vida. O sofrimento e a morte não vêm de Deus, mas são o resultado das escolhas erradas feitas pelo homem que se obstina na auto-suficiência e que prescinde dos dons de Deus.

• Neste texto, João define claramente o caminho que todo o homem deve seguir para chegar à vida eterna: trata-se de “acreditar” em Jesus. “Acreditar” em Jesus não é uma mera adesão intelectual ou teórica a certas verdades da fé; mas é escutar Jesus, acolher a sua mensagem e os seus valores, segui-l’O nesse caminho do amor e da entrega ao Pai e aos irmãos. Passa pelo ser capaz de ultrapassar a indiferença, o comodismo, os projectos pessoais e pelo empenho em concretizar, no dia a dia da vida, os apelos e os desafios de Deus; passa por despir o egoísmo, o orgulho, a auto-suficiência, os preconceitos, para realizar gestos concretos de dom, de entrega, de serviço que tragam alegria, vida e esperança aos irmãos que caminham lado a lado connosco. Neste tempo de caminhada para a Páscoa, somos convidados a converter-nos a Jesus e a percorrer o mesmo caminho de amor total que Ele percorreu.

• Alguns cristãos vivem obcecados e assustados com esse momento final em que Deus vai julgar o homem, depois de pesar na balança as suas acções boas e as suas acções más… João garante-nos que Deus não é um contabilista, a somar os débitos e os créditos do homem para lhes pagar em conformidade… O cristão não vive no medo, pois ele sabe que Deus é esse Pai cheio de amor que oferece a todos os seus filhos a vida eterna. Não é Deus que nos condena; somos nós que escolhemos entre a vida eterna que Deus nos oferece ou a eterna infelicidade.


ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 4º DOMINGO DA QUARESMA
(adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)

1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 4º Domingo da Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

2. PALAVRA DE VIDA.
Depois da sua saída do Egipto, o povo de Deus sabe que o seu Deus é um Deus libertador. Toda a história do povo eleito é a história de uma aliança entre um libertador e um povo libertado. E Jesus vem ao mundo não para o julgar mas para o salvar. Deus toma então, sempre, a iniciativa do encontro, mas o homem tem que fazer a sua parte... Outrora, para conhecer o país onde corria leite e mel, foi preciso que os hebreus deixassem o Egipto, terra da escravidão, e atravessassem o mar Vermelho, depois o deserto, lugar de provação. Para serem salvos da mordedura da serpente venenosa, foi preciso que erguessem os olhos para a serpente de bronze. Jesus será também elevado, e os homens são convidados a erguer os olhos para O olhar, O escutar, seguir o seu exemplo, acolher a sua paz e a sua vida. 

3. À ESCUTA DA PALAVRA.
O grande amor de Deus por nós… Estranha palavra de Jesus que se refere a uma também estranha história de serpente de bronze erguida por Moisés no deserto! As serpentes mordiam os Hebreus na sua travessia do deserto. Então, Deus diz a Moisés para fazer uma serpente de bronze. Olhando-a, os Hebreus eram salvos da morte. Um remédio de certo modo homeopático! Mas diz-nos Jesus que «a minha morte vai tornar-se o remédio que vos salvará da vossa morte». Como? Porque o Pai depositou em Jesus a plenitude do seu amor: «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu único Filho». Então, quando Jesus entra na morte que os homens esvaziaram de qualquer traço de amor – a morte na cruz –, Ele entranha em si esta plenitude de amor. Ele preenche o vazio da morte com este amor infinito. Não há mais vazio, a morte explode na Ressurreição. Apenas Deus, porque é Amor, era capaz de cumprir esta admirável alquimia, muito mais extraordinária que a serpente de bronze no deserto: fazer da morte mais atroz o lugar onde se manifestaria o poder do seu amor. Isso continua verdadeiro hoje. Ele é sempre capaz de pôr no mais profundo de todas as mortes, mesmo as mais atrozes, a presença do seu amor. Não o vemos ainda, tal como os discípulos só viram ao princípio um cadáver na cruz. Mas, graças a este imenso amor de Deus por nós, todas as nossas mortes rebentarão na vida eterna. 

4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Somos dignos da missão, da confiança que Jesus põe em nós? Isso não é assim tão difícil, na realidade. Basta, muitas vezes, a atenção a pequenas coisas. Comportar-se à maneira de Jesus junto de cada um destes pequenos que são os seus irmãos: por uma palavra de acolhimento, um serviço prestado, um pouco de entreajuda, um gesto de partilha, um momento de escuta… Empreender também, ao nível de responsabilidade que é a nossa, atitudes para mudar o que pode ser mudado, para que haja menos injustiça e exclusão. Preparar a Páscoa com os mais esquecidos…


UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
PROPOSTA PARA
ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
Grupo Dinamizador:
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
Tel. 218540900 – Fax: 218540909
scj.lu@netcabo.pt – www.ecclesia.pt/dehonianos