Conferência de D. José Policarpo nas Jornadas Pastorais da CEP

20-06-2013 16:54

A evolução cultural e a evolução da sociedade portuguesa

 

1. A evolução da cultura é um fator importante, porventura decisivo, na evolução da sociedade. É uma influência recíproca: a cultura e a sua evolução, influencia ou mesmo decide da evolução da sociedade; mas as transformações da sociedade têm grande influência na “mutação cultural”, isto é, nas alterações sucessivas da cultura.

Não há sociedades sem cultura, pois trata-se do homem em comunidade, em convivência com todos os outros homens, a qual é motivada por valores, isto é, por ideais de vida humana. As alterações na compreensão da vida em sociedade, são fator importante na evolução cultural. Quando essa compreensão da vida humana se altera, pode perder-se a referência à matriz cultural de um povo e navegarmos num quadro cultural que já não promove a dignidade e a grandeza da pessoa humana.

Para compreendermos as evoluções cultuais temos de ter, como pano de fundo, uma noção de cultura. Servimo-nos aqui da noção de cultura do Concílio Vaticano II (cf. GS, nn. 53 e ss), que corresponde, nos seus traços fundamentais, à definição de cultura da própria UNESCO.

Começa por afirmar-se que o homem só pela cultura acede verdadeira e plenamente à sua humanidade, tendo como referência a natureza humana. A verdade da natureza é um elemento decisivo na verdade da cultura. Diz o Concílio: “sempre que se trata da vida humana, natureza e cultura estão tão estreitamente ligadas quanto possível” (1).

Afirma-se a seguir que a cultura é um conceito abrangente: “A palavra cultura designa tudo o que é expressão humana, aquilo em que o homem afina e desenvolve as capacidades do seu espírito e do seu corpo; se esforça por submeter o universo pelo conhecimento e pelo trabalho; humaniza a vida social, tanto a vida familiar, como o conjunto da vida civil, graças ao progresso dos costumes e das instituições; em suma, a maneira como traduz, comunica e conserva nas suas obras, ao longo do tempo, as grandes experiências espirituais e as grandes aspirações do homem, para que estejam ao serviço do progresso de um grande número e mesmo de todo o género humano” (2).

 

2. Esta abrangência da cultura supõe que ela se define ao longo do tempo. A evolução cultural tem mais o ritmo da história do que do presente, do momento que passa. Só ao longo do tempo cada comunidade humana vai afinando o seu património cultural. Vai-se definindo um meio determinado e histórico no qual cada homem se insere, independentemente da nação ou do século, ao qual vai beber os valores que lhe permitem promover a civilização” (3).

É a este património, definido ao longo do tempo, que se pode chamar “matriz cultural” de um povo, a qual deve ser salvaguardada em toda a evolução cultural e em toda a evolução da sociedade. Quando a evolução das sociedades se decide ao ritmo do presente efémero, afasta-se da matriz cultural e deixa de promover e enquadrar o autêntico progresso da pessoa e da sociedade humanas.

Só uma cultura assim concebida desabrocha em sabedoria e esta é a compreensão radical da existência humana, fonte de inspiração ética. Na visão cristã da cultura, a sabedoria é desafio de eternidade e de santidade. É na sabedoria que a cultura se torna a fonte do sentido autêntico da existência humana.

 

A cultura e a realidade humana

3. Para podermos avaliar a evolução cultural, da sociedade e da própria Igreja, convém ter presentes aquelas dimensões da realidade, pessoal e social, que mais incidência têm na constituição da cultura e na sua evolução.

 

* A dignidade da pessoa humana, é elemento decisivo da evolução cultural. Violá-la significa sempre um retrocesso da cultura. Os elementos fundamentais desta dignidade são: o respeito pela vida humana, desde a conceção até à morte natural; o sentido nobre da liberdade; a justiça expressa nas circunstâncias concretas da vida; um culto da igualdade que respeite o direito à diferença.

 

* A vocação comunitária da pessoa humana, a complementaridade entre o “eu” e o “nós”. O ser humano, criado à imagem de Deus, é, por essência, um ser relacional. A dimensão comunitária é tão importante como a realização individual. Todos os egoísmos e individualismos significam um retrocesso na evolução cultural.

 

* A busca da verdade e suas expressões. É uma das grandes aventuras da cultura. Procurar a verdade é buscar o sentido da própria existência. A verdade não se encontra no horizonte da vida individual. Encontra-se no âmbito da comunidade, tem a ver com uma tradição viva, tem a sua principal expressão na sabedoria. No caso do cristão a última referência da verdade é a “fé da Igreja”, alicerçada na tradição bíblica sobre o mistério do homem.

 

* A dimensão transcendente da vida. Aqui entra o papel das religiões na cultura. A religião oferece uma compreensão do homem, da sua relação com os outros homens, com a tradição e com a história, com o universo. Todas estas dimensões estão enraizadas na fé em Deus e na inter-relação entre os homens e Ele. Acreditar em Deus é elemento decisivo da cultura. A compreensão da interpenetração da dimensão transcendente e da dimensão imanente é essencial. Se a cultura se reduzir à compreensão da realidade imanente, fica truncada no seu horizonte.

 

* O conceito de felicidade. Espontaneamente todos os homens buscam a felicidade. Mas o que é a felicidade? É preciso superar a tensão entre o “ser” e o “ter”. A compreensão do amor, em todas as suas expressões, é decisiva na compreensão da felicidade que se deseja. A compreensão da vida como dom tem de ser prévia à compreensão da vida como fruição. Essa é a grande ousadia do cristianismo: quem aceitar oferecer a sua vida por amor, acabará por descobri-la e encontrá-la. A coincidência entre felicidade e intimidade com Deus é mais difícil mas é o testemunho da santidade. E os Santos influenciam a cultura.

 

* A busca e expressão da beleza. É outro dinamismo congénito ao ser humano, a busca da beleza. Desde a contemplação do universo, à fruição do amor, à tranquilidade da consciência, ao encontro com Deus, a beleza brota como a última linguagem da verdade. As artes não são a única expressão da beleza com impacto na cultura. A beleza é sempre expressão da harmonia, e expressa no dia a dia da vida das pessoas, acaba por deixar marcas culturais.

 

Tópicos da evolução cultural na sociedade portuguesa

4. É campo de análise vasto de que só posso enunciar alguns tópicos. Portugal tem uma cultura, porque tem uma forte identificação com a sua tradição e com a sua história, onde entra, como componente importante, o cristianismo. Poder-se-á falar de uma “matriz cristã” da nossa cultura? Penso que sim, se não esquecermos a influência das migrações a partir da Ásia Central, a influência greco-romana, do judaísmo sempre presente ao longo da nossa história, do islamismo devido ao longo domínio de parte do que é hoje o território de Portugal e das correntes filosóficas europeias, desde o renascimento, ao racionalismo iluminista, às filosofias do indivíduo, ao marxismo como teoria de interpretação da sociedade.

As grandes expressões desta cultura foram a ousadia na aventura e na criatividade, a atração pela universalidade e pelo desconhecido, o fácil contacto com os outros povos e culturas.

A composição do território nacional, cuja origem foi marcada pelo espírito de cruzada e de reconquista cristã, não facilita a unidade cultural. Um dos sinais deste facto é a dificuldade ancestral de construir uma unidade como povo. É célebre a análise do governador romano já no século terceiro da nossa era: “Não compreendo este povo, nem se governa, nem se deixa governar”.

A marca do catolicismo na cultura portuguesa foi constante desde o início da nacionalidade. Vale a pena referir duas expressões institucionais: o ardor missionário, sempre presente na epopeia dos descobrimentos e as relações do Estado Português com a Igreja, expressas na forte relação com o Papa, na colaboração estrutural das grandes ordens religiosas, e na oficialização do catolicismo como religião oficial da Nação Portuguesa.

 

5. A componente que mais influenciou a cultura foi, sem dúvida, o ardor missionário, que se manteve vivo mesmo depois da viragem, anunciada já na segunda metade do séc. XIX e confirmada com a revolução republicana e a lei da separação da Igreja e do Estado. Esta lei, inaceitável e agressiva na sua primeira expressão, abre para uma evolução cultural tanto no Estado como na própria Igreja: o princípio da laicidade do Estado, hoje presente na Constituição da República Portuguesa e aceite pela Concordata, abre o horizonte para a liberdade religiosa, para o respeito pela dignidade de todas as religiões sérias e a garantia de que o Estado, ao serviço de todos os portugueses, na sua variedade, não se identifica com nenhum credo religioso. No caso da Igreja esta perspetiva, depois de uma evolução ao ritmo dos acontecimentos, foi consagrada pelo Concílio Vaticano II.

A vivência prática desta laicidade do Estado é, hoje, ferida por algumas ambiguidades culturais. A laicidade do Estado não pode significar a laicidade da sociedade, onde o catolicismo continua a ser maioritário, no contexto de uma grande variedade de credos religiosos, de ateus e descrentes e de crentes sem religião. Um Estado laico não significa uma sociedade laica. A própria Lei da Liberdade Religiosa limita-se, muitas vezes, à liberdade de culto. Há tendência de privar a Igreja de espaço na intervenção pública. Seria importante para a evolução da cultura um debate sério e dialogante entre a dimensão religiosa e a política, social, cultural, empresarial.

 

6. Um dos elementos particularmente significativos na evolução cultural, tanto da sociedade, como da Igreja, é a compreensão do tempo e sua importância na vida humana. A partir de um determinado momento, esta maneira de exprimir a importância do tempo acentuou duas tendências: uma compreensão do tempo que exclui a eternidade e a sua redução do tempo ao presente, relativizando a história e o futuro. É como se o tempo se limitasse ao nosso tempo, quase ao período que dominamos na nossa experiência.

A dificuldade de integrar a eternidade na compreensão do tempo humano, enfraquece a importância do transcendente na compreensão do homem. É certo que alguns falam da transcendentalidade da vida humana, sem que isso signifique aceitar a transcendência de Deus e da fé religiosa. É certo que os sinais da transcendência estão gravados no coração humano e aí são a marca da relação do homem com Deus.

A compreensão bíblica do tempo marcou profundamente a nossa cultura. Todo o sentido do tempo se passa entre o “protos” e o “eschatom”, numa unidade da compreensão do mistério do tempo, que engloba o próprio tempo divino. Desde a criação que Deus faz parte do tempo humano. Na visão cristã da vida o tempo presente encontrará a sua plenitude numa “meta-histórica”, na Jerusalém Celeste. “Não temos aqui morada permanente”.

Este sentido da vida como caminhada para o tempo definitivo também enfraqueceu na mentalidade de muitos cristãos. É preciso acentuar pastoralmente esta centralidade da esperança cristã.

 

7. O enfraquecimento do sentido de eternidade, repercutiu-se na perceção da realidade, e o horizonte da realidade é o espaço do exercício da liberdade. Quais são as fronteiras da realidade humana? É só o que posso tocar, sentir, verificar? O progresso científico levou a uma teoria segundo a qual só a verificação situa o homem perante o que é real. O próprio sentido da linguagem é decidido pela verificação de que o que exprime é verificável.

Isto levou a um “positivismo” na análise da realidade, que pode tender para uma limitação desse horizonte da realidade. A própria ciência nos mostra que o horizonte da realidade humana se alarga continuamente. O homem é um ser espiritual e esta qualidade alarga o horizonte da realidade. A fé alarga-o para o mistério transcendente, a fé torna Deus real. Nas expressões da criatividade humana a busca da beleza é a expressão deste alargar do horizonte da realidade.

 

8. O positivismo na definição do que é real tem várias consequências na evolução cultural. Antes de mais a tendência em tratar todas as realidades humanas com o mesmo sentido ético, e o diluir da fronteira entre o bem e o mal. Toda a realidade humana, independentemente do seu sentido ético, passa a ter direitos de cidade, regulados pela lei. Este positivismo influencia as próprias leis, que não são tanto propostas éticas dos caminhos da verdade e do bem, mas regulação da realidade humana, seja ela qual for. Exemplos deste fenómeno:

 

* O aborto clandestino era uma realidade preocupante? Legaliza-se a interrupção voluntária da gravidez, relativizando o sentido ético da interrupção violenta da vida.

 

* A homossexualidade é uma realidade, pessoas do mesmo sexo estabelecem relações amorosas que na antropologia cultural são próprias da relação do homem com a mulher? Estabelece-se a igualdade de género, sendo a opção homossexual tao verdadeira como a heterossexual, permite-se o casamento entre pessoas do mesmo sexo e está-se à beira de permitir adoção de crianças por esses pares de pessoas do mesmo sexo.

 

Dou estes exemplos, os mais chocantes numa evolução cultural, de total rutura com a visão do homem em sociedade, enraizada no direito natural e aprofundada na visão cristã da sociedade.

Uma outra concretização do positivismo na evolução da cultura é a redução ao económico, ao lucro, aos bens materiais das realidades que os homens buscam e pelas quais lutam. A felicidade do homem não passa só por aí, mas pela busca do amor, da beleza, da convivência fraterna. O economicismo, os mecanismos financeiros, a ânsia do lucro atrofiam o horizonte da beleza da vida na variedade das suas expressões. E quantas vezes os cristãos pactuam com essa redução positiva da vida. O Magistério da Igreja, sobre a família e sobre a dimensão social do homem é uma proposta contínua a influenciar, num sentido reto, a evolução cultural.

 

9. Um outro elemento que influi na evolução cultural, tanto da Igreja como da sociedade, são as novas linguagens. É ainda difícil de avaliar o seu efeito na mutação cultural. Antes de mais trata-se de um elemento intercultural, atravessa todas as culturas, proporciona uma visão universal da compreensão do homem e da história. A prova disso são as notícias de países que, para defenderem as suas visões culturais procuram impedir as diversas redes de comunicação, aliás com pouco sucesso, pois entrámos num mundo em que não há barreiras à comunicação. Não se trata apenas de comunicação, mas de categorias de compreensão da realidade. Este fenómeno já está a originar dificuldades de comunicação entre gerações.

A consideração desta realidade deve empenhar as diversas estruturas da sociedade: a educação, a chamada comunicação social, a própria Igreja. Um cuidado particular se tem de ter com as crianças e os jovens, pois a exposição a estas novas linguagens e o acesso fácil às novas tecnologias de informação, podem alterar a compreensão dos valores tradicionais das diversas culturas.

A Igreja deveria estar na primeira linha da educação para estas novas linguagens, e também aqui a família se revela como o ambiente base da educação. Sinto que a Igreja, na sua atitude e nas suas estruturas, se já utiliza os mecanismos destas novas linguagens, ainda não foi capaz de um diálogo integrador, de autêntica abertura, que tem de ser crítica a esta mutação cultural. A opinião pública e a formação das consciências individuais é hoje influenciada e plasmada por esta nova realidade. A comunicação é, hoje, a charneira da evolução cultural. A Igreja tem de investir em pessoas e estruturas que, com competência, enfrentem esta realidade. A mensagem cristã, que abre o homem para horizontes novos da vida, não está prisioneira de nenhuma cultura, embora tenha ajudado a formar as culturas. Qual será o futuro da evangelização no contexto destas novas linguagens? É uma missão que exige mais ousadia do que percorrer oceanos e continentes.

O ponto de partida é sempre o homem. É preciso construir, sempre de novo, o ideal do diálogo e do amor, vencer individualismos, não se fechar à beleza, não considerar as linguagens que, em cada momento, nos invadem, como a Palavra da vida que, em qualquer linguagem, nos abre para a esperança.

Fátima, 19 de junho de 2013

D. José da Cruz Policarpo, administrador apostólico do Patriarcado de Lisboa

 

NOTAS:

1 -Gaudium et Spes, nº 53

2 - Ibidem

3 - cf. Ibidem