TESTEMUNHO - SALVADOR ESCRIBANO HERNÁNDEZ - PARTICIPANTE NO PRIMEIRO CURSILHO DA HISTÓRIA

22-08-2014 09:38

TESTEMUNHO

SALVADOR ESCRIBANO HERNÁNDEZ

PARTICIPANTE NO PRIMEIRO CURSILHO DA HISTÓRIA

REALIZADO EM CALA FIGUERA DE SANTINYÍ, MAIORCA, ESPANHA

(20 A 23 DE AGOSTO DE 1944)

 

ALGUMAS PALAVRAS PRÉVIAS

            Quando, por iniciativa de Eduardo Bonnín e amável convite de Francisco Oliver, ambos destacados dirigentes de Palma de Maiorca e de minha terra natal – Felanitx –, respectivamente, assisti a esse “cursilho” do chalé de Cala Figuera Santinyí, em Agosto de 1944, juntamente com mais treze jovens, nunca imaginei – nem ninguém podia imaginar – a imprevisível ressonância que essa singular experiência teria no Mundo, os milhões de pessoas que, a partir daí, viveriam uma experiência semelhante que viria a transformar radicalmente as suas vidas, e menos ainda que passados sessenta anos, eu estaria aqui, perante vós, esquadrinhando os empoeirados arquivos da minha oxidada memória, procurando encontrar algo daquela vivência íntima que possa partilhar convosco.

            Há-de ser importante, já que amigos meus de países distantes e agora da minha própria diocese, me pedem que vos fale do que foi o Cursilho de Cala Figuera. Não creio ser a pessoa mais indicada. Mas sendo dos poucos que sobrevivem e não tendo vocês à mão, mais ninguém nem melhor, não vos resta, nem me resta a mim, outra solução.

            Alguns pormenores esvaíram-se, perderam-se algures com o passar e o peso dos anos. Outros conservam-se, aí estão, intactos; tenho-os claros na própria alma como se tivessem acontecido ontem. É destas, das recordações que perduram e se mantêm frescas que vos falarei.

            Assim sendo, e se não me levam a mal, gostaria de começar por falar um pouco de mim, da minha pequena história; talvez possais ter uma ideia mais clara e real daquilo que o Cursilho de Cala Figuera foi e significou para um desses catorze jovenzinhos que, sem o saber, assistiu ao seu encontro com a História, naquele 20 de Agosto de 1944.

 

A MINHA PEQUENA HISTÓRIA

            Provenho duma família modesta e não numerosa, cujas raízes se perdem na Província de Salamanca, ali por Castela a Velha. Obrigados pelas circunstâncias, os meus pais, recém casados, emigraram para Felanitx, em 1921, cidade onde o meu progenitor foi colocado (na função pública), em compensação dos ferimentos sofridos ao participar na Guerra del Riff, no norte de África, quando Espanha tinha o protectorado de Marrocos.

            De meus avós apenas sei que os paternos se chamavam Josefa Martinez e Salvador Escribano Hernández, e os maternos Bonifácia Martin e Romualdo Hernández. Os meus pais visitaram-nos algumas vezes, mas as distâncias e os recursos não eram propícios, pelo que as raízes se foram diluindo com o passar do tempo. Doutros familiares não resta mais que uma vaga recordação.

            Meus pais: Antonio Escribano Martinez (1900-1977) e Valentina Hernández Martin (1901-1982). Ele, um homem trabalhador e afável, de contrastante temperamento e nervos à flor da pele, a quem os seus afazeres na “excelentíssima” Câmara da cidade de Felanitx deixavam pouco tempo livre para nós. Ela, uma mulher pacífica, dona de casa, amiga de ajudar, sempre dependente dos filhos e das tarefas domésticas. A sua preocupação foi criar-nos e fazer-nos felizes; foi ela quem cuidou de que não nos faltasse formação e orientação religiosas. Estive sempre muito ligado a ela; quando adoeceu previ a sua morte. Ambos faleceram no mês de Março, o meu pai uns dias antes da festa de S. José e minha mãe precisamente nesse dia.

            Fomos três irmãos: Pedro (1939-), o mais novo, actualmente dedicado ao pouco rentável negócio de cal branca; Josefa (1931-1934), a do meio, falecida com três anos de idade, em consequência duma meningite fatal, doença irreversivelmente mortal naquele tempo; e eu, Salvador, o mais velho dos três.

            O meu nome completo é SALVADOR ESCRIBANO HERNÁNDEZ, nascido a um de Setembro de 1929 (ainda que no Registo Civil conste dia 2), cerca das 6 horas da manhã de um domingo (talvez por isso digam que estou sempre cansado e sou pouco madrugador), na localidade de Felanitx, situada a Sul da Ilha, a 50 Kms de Palma de Maiorca, a 10 de Manacor e a outros tantos de Santinyí (Cala Figuera).

            Naquela altura Felanitx tinha uma pequena e pacata população de não mais de 10 000 habitantes (pouco mais que agora), dedicada à agricultura, à transformação de produtos agrícolas (hortícolas e vitivinícolas), fabrico de cerâmica, algum turismo e a matança do porco para o enchido de camayot[1], botifarrones[2], linguiças, e claro, a nossa famosa “sobrasada”[3] com denominação de origem; pequena indústria que, a pouco e pouco, parece ir-se desvanecendo, tentando fixar-se em Porreras (Porreres em maiorquino), outra localidade próxima.

            E, ainda que já não com o seu clássico bairrismo de outrora, as tradicionais verbenas que têm lugar durante as festas de Santa Margarida, padroeira do lugar (20 de Julho) e as festividades de Sto. Agostinho (28 de Agosto) continuam a ser a distracção mais esperada e desejada dos aldeões. Dias em que a localidade parece renascer. Os familiares aproveitam para encurtar distâncias e refrescar o sangue (matar saudades?); os rapazes e as raparigas vestem os seus melhores trajes sem faltarem as e os trabalhadores rurais das Baleares que, com singular alegria, interpretam o folclórico “ball de bot”[4].

            O acontecimento histórico (melhor dito, a lenda) de maior relevo que a história regista como acontecido por estes lados, é a do Príncipe de Viana que esteve prisioneiro no Castelo de Santueri (último baluarte do mouros em Maiorca) que, segundo conta a lenda, se travou de amores com uma moça do povo, filha dum lavrador abastado, com quem procriou o célebre Cristóvão Colombo, posterior descobridor da América. Para além deste, a História não regista qualquer outro acontecimento de relevo.

            A minha infância e adolescência decorreram de forma tranquila e feliz, por vezes sacudidas pelos sobressaltos da guerra civil (1936-1939), que, de vez em quando, se fazia sentir na escassez de alimentos. Os meus pais e vizinhos costumavam dizer que eu era um menino bom, e, julgo que o fui; ainda que, e aqui para nós, quem mas fazia, pagava-mas.

            Aos dois anos levaram-me para o “infantário” ao cuidado das freiras Irmãs da Caridade; aos quatro estava na Instrução Primária, também no Colégio das Irmãs da Caridade. Foram elas que cuidaram da minha formação, de suprir amorosamente os vazios paternos e as limitações de minha Mãe; devem tê-lo feito muito bem pois todos os dias as tenho presentes na memória e no coração. A elas devo, em boa parte, aquilo que sou. Foram elas que guiaram os meus primeiros e titubeantes passos, e me aproximaram de Deus: Irmã Margarita de los Reyes, uma santa mulher; Irmã Maria de Cristo, estupenda; e que dizer de Irmã Catalina del Crucificado e irmã Bárbara, ambas com um coração muito humano, todas extremamente piedosas.

            Depois, aos 9 anos, iniciei a minha formação religiosa enquanto frequentava a “Escola Graduada” sob a orientação de D. Francisco Grimalt, homónimo de Francisco, seu sobrinho[5].

A partir dos doze anos costumava assistir aos Exercícios Espirituais que, anualmente organizava, durante o Verão, D. Juan Vidal Olleres, assistente da Acção Católica, associação que reunia jovens dos 12 aos 17 anos da nossa localidade. E não muito depois, pouco antes de completar os 15, vivi o célebre Cursilho de Cala Figuera, de que vos falarei mais adiante.

            A minha adolescência chegou quando o colapso mundial ia avançado, e também o sentimos pela carência de alimentos. Tínhamos que comer do que havia: pão de milho e o que distribuíam no racionamento, que não era muito, e alguma coisa que meu pai conseguia comprar na “candonga”, como lhe chamavam. Também fazíamos a matança do porco e assim tínhamos enchido que minha mãe ia racionando, ao longo do ano; um azeiteiro vinha da montanha situada norte da ilha e vendia-no-lo em bilhas de 5 ou 10 litros, conforme preferíssemos, e as batatas compravam-se em Campos, povoação a 11 Kms de Felanitx.

            Apesar das vicissitudes da época, tive condições para ingressar no Instituto de Ensino Médio, dependente do Instituto de Ensino Médio Ramón Llull de Palma, onde frequentei o ensino secundário, enquanto as asas cresciam e se fortaleciam como que a prepararem-se para levantar voo.

            Esse dia chegou aos 19 anos, corria o ano de 1948, quando me mudei para Barcelona, por uns dias, com a intenção de me submeter à Revalida[6], em que fiquei aprovado, juntamente com Paco Grimalt e Toni Binimelis.

            Feito o exame, regressei a Felanitx para arrumar ideias; tinha que definir o caminho a seguir, a candidatura a apresentar. Foi nessa altura que tive uma conversa com a mãe de Sebastian Jaume Adrover “Cadernera”[7], amigo de infância que depois seria sacerdote. Foi ela quem me sugeriu que estudasse e concorresse ao Servicio de Aduanas e Impuestos Especiales (Serviços Alfandegários) porque, segundo dizia, o mesmo tinham feito outros da minha terra, com bons resultados.

            Não havendo muito por onde escolher, decidi-me por esta inesperada opção, uma vez aprovado na Revalida. Com o desejo de fazer carreira e ainda com a necessidade de viver por meus próprios meios, rompi com o incipiente vínculo aos Cursilhos, ausentei-me de Felanitx e separei-me dos meus pais que me atribuíram, como apoio, uma modesta mesada de 1000 pesetas, proporcional às suas limitadas possibilidades, e por conselho, um “não faças disparates e não o estragues”. Minha Mãe ficou com os olhos humedecidos.

            Já em Madrid, instalei-me no Bairro dos Quatro Caminhos, em casa da “Tia Remédios”, uma hospitaleira e piedosa mulher “de missa diária”, avó de uma prima meia-irmã de minha Mãe, de nome Maruja (filha de dona Eudosia Mata Martín) que se mantinha com a modesta pensão que lhe deixou seu falecido marido, completada agora com o pouco que eu lhe dava.

            Foi assim que entrei na Academia e me preparei para concorrer aos Serviços Alfandegários.

            Entretanto as coisas complicaram-se. Dª. Remédios, aquela boa mulher que me deu alojamento durante cinco anos, adoeceu gravemente e faleceu em consequência duma operação às varizes. E assim me vi obrigado a passar a viver numa pensão e a trabalhar no Verão para estudar no Inverno.

            De vez em quando ia até Felanitx durante as férias. Foi em 1953 que conheci Maria Mesquita Perelló que gostava de dançar numa “colla”[8], com quem 8 anos depois me casaria e de quem teria dois formosos rebentos, António Miguel (1962-), que me deu dois netinhos adoráveis (Miqel Ángel e Marc) e Valentina Maria de los Ángeles, (1963-1997), falecida num absurdo acidente de viação.[9]

            Durante a minha ausência, de regresso a Madrid, Maria e eu costumávamos escrever-nos todos os dias, sem falhar um; mais tarde, quando voltávamos a encontrar-nos, nas férias seguintes, costumávamos queimar todas as cartas.

            E os anos foram passando…

            Depois de vãs tentativas e persistentes esforços, fiquei aprovado no desejado concurso para os Serviços Alfandegários (1961); concorrendo com mais 3 000 candidatos consegui a 6ª de 12 vagas que foram abertas, sendo colocado em Port-Bou (“Puerto del Buey” em catalão), na fronteira com a França.

            Obtida a colocação em Março de 1961, casámo-nos quase de imediato, na Paróquia de S. Miguel de Felanitx (27 de Setembro desse mesmo ano). Assim o havia combinado com Maria, que me pressionava cada vez mais, receosa de que me apaixonasse por alguma bonita madrilena. Já casados, fomos viver para Llansa, localidade próxima de Port-Bou.

            Em Port-Bou estive colocado como “oficial”, de 1961 a 1965, período em que, esporadicamente, viajava até Felanitx, para visitar os meus pais e para que ali nascessem os meus filhos. Finalmente, em 1965, fui transferido para a Inspecção de Muelles de Palma de Maiorca onde ascendi a “sub-inspector”, cargo em que permaneci até 1992, ano em que decidi aposentar-me por motivos de saúde, depois de ter sofrido um enfarte.

            Com o passar dos anos vieram os achaques e também os de minha querida Maria que, após uma dolorosa e prolongada doença, faleceu em 14 de Março de 2002, vítima dum astrocitoma na coluna cervical.

            Depois da morte de Maria, já nada era igual. A minha vida perdeu sentido e razão de ser. Afundei-me numa terrível depressão, caí num profundo abismo sem fundo, (sic) sentia-me morrer, queria morrer… Pedia a Deus me fizesse deixar de sofrer este asfixiante suplício… E, na sua infinita misericórdia, Ele escutou-me…

            Sem que disso tivesse consciência clara, a semente lançada no Cursilho de Cala Figuera começou a palpitar, a dar sinais de vida. Tinha estado adormecida durante décadas, à espera de germinar. A Eucaristia e a oração do Rosário do Cenáculo Mariano da Virgem da Paz, de Buenos Aires, foram suporte eficaz, bálsamo para as minhas feridas. O amor de Deus começou a transparecer na minha vida, a infundir-me ânimo e força para sair do terrível abatimento. Ainda que com dificuldade, pus-me de pé, disposto a percorrer o caminho de volta à Casa de meu Pai. Foi o começo deste não fácil mas feliz reencontro. Mas, havia mais…

            O milagre ainda não tinha acontecido… “algo” (que agora sei que foi “Alguém”) animou-me a escrever umas quantas linhas na Internet, sem destinatário concreto, procurando estabelecer contacto com os já quase esquecidos Cursilhos. Depois de infrutíferas e desanimadoras tentativas, alguém respondeu à minha insignificante nota; a sua resposta espontânea, fraternal e de sincero interesse em conhecer-me, surpreendeu-me; sabia de mim, de Cala Figuera, de Eduardo, de… não podia acreditar. Emocionei-me até às lágrimas, quase me comovi. Não conseguia acreditar que um acontecimento ocorrido quase há 60 anos, num solitário chalé, tivesse atingido tamanha dimensão.

            A semente adormecida espreguiçou-se, despertou e inquietou; sem o saber, o intra-nauta meu desconhecido interlocutor, e os seus cada vez mais frequentes mails iam-me infundindo e dando ânimo, fazendo-me voltar à vida; além disso, aos seus mails seguiram-se outros e outros, de outros tantos cursilhistas intra-nautas que generosa e fraternalmente me estendiam mão amiga, ao mesmo tempo que queriam saber de mim, de nós, de Cala Figuera…

E esta é a razão, meus amigos, porque me atrevi a escrever, a falar-vos não só do que foi o Cursilho de Cala Figuera, mas também do milagre que produziu em mim, não nesse preciso momento, mas 60 anos depois.

            Comunicar com tantos e tão cordiais amigos, de tantas partes do mundo, fez luz na minha cabeça e inflamou o meu coração. Fizeram-me tomar consciência da dimensão e significado que esse primeiro cursilho alcançou e teve na vida de milhões de pessoas e descobrir o porquê da sua dimensão, do seu significado e da sua transcendência. Custa a entender que uma experiência vivida 60 anos atrás viesse a ter não só uma importância capital como a trazer-me de novo à vida, pela razão de que Deus existe e somos amados por Ele, mensagem proclamada seis décadas atrás e que só muito recentemente compreendi.

            Desde aquele primeiro mail até à data, muitas outras coisas aconteceram. O Senhor foi misericordioso e providente: voltei para Ele; a minha vida tem sentido; sou um homem “razoavelmente” feliz. Maria, Valentina e eu estamos em paz; tenho o meu filho e os meus netinhos; coisas ainda a fazer; experiências a viver; e tudo graças àquela semente lançada num chalé de Cala Figuera de Santinyí que brotou, cresceu e frutificou em abundância, tanto e de tão inusitada maneira que pude deixar para trás o terrível pesadelo; estabelecer laços de amizade com verdadeiros amigos de muitas partes do mundo; reencontrar-me comigo mesmo, com Deus e com o meu próximo e, muito especialmente com o homem que, com o coração, a semeou no meu coração, Eduardo Bonnín Aguilló, com quem, para além disso, como se tudo isto ainda fosse pouco, faço reunião de Grupo todas as quintas-feiras, às seis da tarde em ponto. Posso desejar mais?

            Obrigado Senhor! Dou-te muitas graças por Eduardo e por todos os muitos e bons amigos intra-nautas com quem me permites partilhar diariamente. Obrigado pela sua solidária e fraternal amizade que me devolveu a Fé, a confiança e o desejo de viver. Nunca serei capaz de agradecer o suficiente.

            Esta foi, queridos amigos, em poucas palavras, a minha pequena história, o que foi e o que é a minha vida. Encontros e desencontros, alegrias e tristezas e toda a espécie de vicissitudes entraram no meu alforge, onde, graças a Deus e ao Cursilho de Cala Figuera, há espaço, e muito, para o entusiasmo, a entrega e o espírito de caridade.

 

 

O CURSILHO DE CALA FIGUERA

            Foi aos 12 e 13 anos de idade que, com autorização de meus pais, assisti a dois dos Exercícios Espirituais, que, como disse, promovia e organizava em cada Verão, Don Juan Vidal Ollers, assistente da Acção Católica; um com um padre jesuíta de cujo nome já não me recordo e um outro com o Pe. Antonio Amoros. Lembro-me vagamente de que, por essa altura, se falava duma peregrinação a Santiago de Compostela, e que ia sendo adiada por motivos diversos. Primeiro por causa da Guerra Civil e depois por causa da Segunda Grande Guerra. Havia uma canção que ainda ecoa na minha memória, ainda que não me lembre perfeitamente dela. Sei que dizíamos: “com São Tiago hei-de ser santo”. Quando finalmente se realizou, eu não participei; não me recordo de ter sido convidado pessoalmente; além disso, os custos não me teriam permitido participar.

            Próximo dos 15 anos, estando na casa que ocupava a Acção Católica, fui abordado por Francisco Oliver, um dirigente muito activo e querido em Felanitx, pelo seu calor humano, com o propósito de me convidar para uns “cursilhos” que, segundo dizia, estavam a ser organizados por Eduardo Bonnín, naquela altura destacado dirigente da Acção Católica. A notícia chegou a outros amigos da minha terra e de outras localidades vizinhas, mais ou menos nos mesmos termos. Ninguém objectou, todos aceitámos com gosto. Ao sempre amável e cavalheiresco Oliver não se podia dizer que não. Os meus pais também não puseram obstáculos pois costumavam autorizar-me a ir aos Exercícios Espirituais e, além disso, o Cursilho não ia custar-nos uma peseta.

            Se bem me recordo, foi na própria casa da Acção Católica que nos reunimos, na tarde do dia 20 de Agosto de 1944. Logo que se juntou todo o grupo, Francisco Oliver dirigiu-nos a palavra para nos apresentar a Eduardo Bonnín, Jaime Riutort e José Ferragut, que, segundo disse, seriam os encarregados de dar o “cursilho”. Com a sua voz agradável, que desde o primeiro momento nos impressionou, Eduardo convidou-nos a viver e conviver a experiência com alegria e fraterno espírito de amizade.

            Assim, depressa me senti entre um pequeno grupo de 14 jovens, quase todos eles naturais de Felanitx, preparados para partir com destino a Santinyí, levando como bagagem uma muda de roupa, uma manta e alguns artigos de higiene.

            Ainda conservo na memória o ambiente de franca camaradagem que prevaleceu no grupo, desde o primeiro momento. Era notório o interesse de Eduardo, Jaime, José e do próprio Oliver para nos animar, coisa que, por outro lado não era difícil, pois quase todos éramos amigos ou pelo menos conhecidos, da mesma localidade.

            Alguém de Palma ou de Felanitx se encarregou de nos levar até ao local do evento, seguindo por Cas Concos des Cavaller (“Casa de los Tios del Caballero”). O percurso foi curto. Chegámos a Santinyí ao anoitecer do dia 20 de Agosto, havia ainda luz do dia. Dirigimo-nos a Cala Figuera, descemos e caminhámos até ao chalé, que nunca soube de quem era nem quem o disponibilizou para aquele fim; o que recordo, isso sim, é que se encontrava isolado (apenas havia por ali uma ou outra construção) e muito próximo da “cala”[10] que lhe dá o nome.

Uma vez no chalé, o Eduardo dirigiu-nos umas palavras de boas-vindas, convidando-nos, de novo, a partilhar a experiência com sã e santa alegria. Cada um se acomodou o melhor que pode, nos quartos indicados para este fim, que não eram mais de três.

 

OS 14 E ALGO MAIS

            Fomos 14 os escolhidos, uns mais inquietos que outros, eu dos mais tranquilos. As nossas idades? Entre os 14 e os 23 anos, aproximadamente. Eu quase a completar os 15, em Setembro de 1944.

 

01. António (Toni) Binimelis Sagrera (+). – Já falecido, tragicamente. Era um rapaz muito bom, sem dúvida o mais inteligente e o que mais se preparou, de todos os que fomos a Cala. Gostava de explicar coisas que os outros não sabiam. Costumava passar os domingos a ensinar a sua mãe e sua avó – que vivia com eles – coisas em latim. Quando lhe diziam que sabia muitas coisas, ficava com um ar muito feliz. O seu pai era camponês, mas viviam muito desafogadamente.

Era do meu curso de ensino secundário que iniciou com 11 anos de idade. Passava as férias a estudar e nós, os outros, a jogar; Sebastián Mestre, Bartolomé Obrador, outros amigos e companheiros de estudos e eu aproveitávamos para copiar dele as traduções de latim e grego. Ficava encantado por fazermos isso.

Tinha propensão para estudar estas coisas raras do indo-europeu, línguas mortas… Soube que foi para Madrid onde cursou filosofia hispânica e outras coisas; que criou amizade com um dos seus professores, um sacerdote amigo do embaixador espanhol na Índia, de origem maiorquina, pelo que foi para Nova Deli, onde, entre outras coisas, dava aulas na Universidade.

Depois não soube mais nada dele, até que, estando eu em serviço em Palma, soube que o tinham morto em Nova Deli, mas não soube porquê. Coube-me desalfandegar alguns dos seus bens que os seus familiares fizeram trazer para Palma de Maiorca.

02. Antonio (Tony) Mas (+). De carácter bonacheirão, muito boa pessoa, de muito bom trato, era uma pessoa com quem dava gosto conversar; também oriundo de Felanitx, desconheço o seu segundo apelido. Soube que mais tarde fixou residência em Palma e que seus pais continuavam em Felanitx.

Era bastante mais velho que nós. Suponho que era o mais velho de nós, com 5 ou 6 anos mais. Creio que casou e estava no Instituto Nacional de Previsión (equivalente ao que é hoje a Segurança Social) mas não sei que cargo tinha. Não voltei a vê-lo nem soube mais nada dele; faleceu quando eu estava ainda na Península.

Conhecia a sua família. Eram trabalhadores rurais, muitos irmãos e irmãs, duas delas freiras, uma Filha da Caridade e outra Irmã da Caridade, que estavam nos hospitais e depois partiram para o Peru e não soube mais nada delas.

03. Antonio (Tony) Mesquida Nebot. – Deste sim, nunca esqueci o segundo apelido. Chamávamos-lhe Nebot “ao quadrado” porque era sobrinho dum sacerdote que nos dava latim, no Instituto, de nome “Nebot” Mesquida. Em maiorquino, nebot significa sobrinho pelo que chamávamos a este António, em maiorquino, “nebot des vicari Nebot” que se pode traduzir por “sobrinho do Vigário Sobrinho”.

Víamo-nos e cumprimentávamo-nos com alguma frequência; uma vez em que o vi, logo depois de terminar o ensino secundário, disse-me que ia para Salamanca estudar para Padre. Quando muitos anos depois voltei a encontrá-lo, disse-me que já era padre e que estava na Paróquia de Santo Agostinho, próximo do Palácio de “Marivent” (Mar e Vento), onde os reis de Espanha costumam passar o Verão, na costa sul de Palma.

Voltei a vê-lo em mais algumas ocasiões, porque era professor de religião dos meus filhos, no Instituto Juan Alcover. Ultimamente não nos temos encontrado. Suponho que já não vai ao Instituto. Segundo me disse Eduardo, continua na Paróquia de Sto. Agostinho, pois como há falta de sacerdotes, pediram-lhe que continuasse.

04. Antonio (Toni) Obrador Albons. – António era de classe média-alta. Seus pais viviam das suas propriedades agrícolas e viviam bem. Também fez a Revalida e depois seguiu Veterinária, mas a sua paixão era o xadrez. Era uma pessoa muito afável; costumávamos encontrar-nos no comboio quando viajávamos para Madrid, onde estudou uns anos e cumprimentávamo-nos com uma alegria fraternal. Lembro-me que reprovava nos exames por ir para os campeonatos de xadrez; me parece que depois transferiu a sua matrícula para Bilbau, mas não posso garanti-lo. Foi para algures no norte de Espanha. Não, não tinha nenhum parentesco com Bartolomé Obrador.

Casou com uma mulher de nome Francisca, que foi quem fez com que terminasse o curso. Há muitos anos que não sei dele. Sei que morou na calle Mayor, em Felanitx e que agora vive em Porto Colombo, a uns 12 Kms. de Felanitx.

05. Bartolomé (Toméu) Obrador Sagrera (+). – Também já falecido. Com Toméu também mantive uma muito boa amizade. Éramos muito bons amigos, visitávamo-nos muito, fazíamos juntos curtas viagens. Era muito amável, um pouco introvertido, fazia tudo muito parcimoniosamente, nunca tinha pressa para nada, era como eu.

Lembro-me de que a sua mãe o obrigava a comer corações de andorinha, crus, “para ser muito inteligente”. Fizemos juntos o secundário, era dos que copiávamos as traduções de grego e latim pelo Antonio Biminelis. Coisas de estudantes.

Estando eu fora de Maiorca, soube que se casou e mais tarde morreu de enfarte, mas não sei mais. Senti muito a sua perda.

06. Damián (Damià) Bover (+). – Não sei o seu segundo apelido. Também era de Felanitx. Não tivemos muitos contactos, mas, nos poucos que tivemos, sempre mantivemos uma boa relação. Tal como eu, Damián era dos amigos íntimos de Francisco Oliver. Via-o e cumprimentava-o na Acção Católica. Era uma pessoa agradável, de trato amável. A sua família dedicava-se à agricultura: cultura de milho, trigo, cevada, algumas vinhas e figueiras. Viviam bem.

Creio que chegou a estudar na “Escola Graduada”. Creio que também casou e já morreu, mas não sei mais nada.

07. Francisco (Xisco) Estarellas Llaneras (+). – Partiu do meio de nós muito recentemente, no início deste ano de 2004, por causa duma complicação renal provocada pela diabetes de que sofria desde muito novo. Homem de fé. Via-o com frequência na Missa ou a visitar o Santíssimo.

Uma grande pessoa, amigo dos seus amigos, entre os quais me encontrava eu. Não fazia grupo com ele; mas como estudávamos juntos víamo-nos e encontrávamo-nos todos os dias na Escola. Terminou o Secundário mas não fez a Revalida, nem obteve qualquer título académico.

Seu pai tinha uma oficina de fazer facas e artigos do mesmo género e trabalhava com ele. Depois estabeleceu-se com uma loja de artigos de decoração e casou-se. Creio que teve uma filha. Teve problemas de açúcar toda a sua vida, herdados de sua mãe. Foi sempre doente. Tentei visitá-lo nos últimos anos mas a família não permitia, por causa do seu estado de saúde.

08. Francisco (Xisco) Grimalt Sancho. – Este “Chico” é outro dos que conheci muito bem. Fizemos juntos o Secundário. Era catalão, de Rubi, próximo de Barcelona, se bem me lembro, e era um bom catalão – “la pela es la pela”[11]. Bom “pesetero”.[12] Como bom catalão era muito “senhor do seu nariz”, mas era boa pessoa.

            Veio para Felanitx em 1940, quando da Guerra Europeia (a Segunda Guerra Mundial) que foi quando mais se sentiu a escassez de alimentos. Má deve ter sido a sua situação económica pois sentiu-se obrigado a deixar o pai e a mãe para ir viver com os tios - don Francisco Grimalt  e doña Magdalena -, que não tinham filhos e o trataram como tal. O seu tio era o director da “Escuela Graduada” que, por ter o título de professor, se distinguia no trato.

            Ao terminar o ensino secundário voltou para sua casa e não soube mais dele. Penso que se formou em Medicina e que foi viver para Terrassa, mais perto de Terragona, mas não sei se ainda é vivo.

            09. Francisco Oliver Oliver (+). – A Oliver sempre chamámos Francisco, nunca Chico. Com ele sim, tive uma grande amizade. Pelo que sei agora, se a alguém cabe o título de “precursor do pré-cursilho” é a ele. Foi ele que, em estreita colaboração com Eduardo, nos entusiasmou a ir ao Cursilho de Cala Figuera, e eis que o conseguiu. Quando nos convidou com a sua amável mas convincente maneira de ser, todos aceitámos, ninguém hesitou. Certamente viveu o Cursilho de Cala como nós, como mais um participante. 

            Era um tio muito preocupado com todos, não havia excepções. Quando nos encontrávamos na rua, falávamos de muitas coisas, tinha sempre tempo para todos, sempre disposto a escutar; se lhe davam queixas de alguém, dizia: “não faças caso, não o faz por mal”.

Tinha um carácter muito amável, nunca levantava a voz para ninguém, parecia que apenas vivia para ajudar; dele nada de mal se podia dizer; respondia sempre com amabilidade, ninguém tinha nada que lhe apontar, insistia muito em que nos entregássemos ao Senhor.

Este Francisco não era de Felanitx, mas duma pequena povoação que se chama Son Oliver, à entrada de Felanitx, vindo de Campos, à esquerda, uns 3 ou 4 Kms antes de chegarmos. Devia viver bem pois dedicava todo o seu tempo ao apostolado. E, que eu saiba, nunca casou. Soube que faleceu o ano passado (2003), mas desconheço pormenores.

10. Leopoldo Febrer (+). – Não sei o seu segundo apelido; tinha mais dois anos que eu; nunca frequentou o Instituto. Contactei pouco com ele; nem sequer nos conhecíamos. Tinha-o visto algumas vezes, mas apenas sabia que vivia em Felanitx com uma tia que tinha uma pensão, a “Pensão Riera”. O que recordo bem é que, depois do Cursilho de Cala, era dos que faziam visita diária ao Santíssimo.

Em Cala portou-se muito bem. Soube, por Eduardo, que tinha falecido.

11. Miguel (Miqel) Rigo. – Não sei o seu segundo apelido. Conhecia-o porque meus pais reconstruíram uma casa velha, e foi o seu irmão quem no-la reconstruiu. Conhecia-o apenas daí. Também não foi para o Instituto. Era marceneiro.

Era de Felanitx, uma dessas pessoas de quem não conseguimos dar referências, um pouco distante, mas entendíamo-nos bem. Como era dois ou três anos mais velho que eu, não convivemos muito. Não sei se ainda é vivo. Soube que sua esposa esteve muito doente.

12. Onofre (Nofre) Arbona. – Não sei o seu segundo apelido. Pese embora o facto de, mais tarde, figurar como um dos mais destacados Dirigentes do MCC, é talvez o que conheci mais mal. Não o conhecia antes, era mais velho que nós, talvez uns três ou quatro anos. Parecia uma boa pessoa. Sei que era de Montuiri, uma localidade que fica a meio caminho entre Palma e Mimacor. Creio que ainda é vivo, mas não sei mais nada dele. Nunca mais voltei a vê-lo.

13. Sebastián (Tiá) Mestre Roig (+). – Outro que já nos deixou. Tiá era muito meu amigo, pelo que não lhe encontro defeitos. Também era de Felanitx, da minha idade. Lembro-me que gostava de poesia. Fez um poema quando foi benzido o estandarte de “Aspirante”. Era fraco nos estudos. Não terminou o ensino secundário ou, pelo menos, não o validou.

Pessoa magnífica, deixei de o ver após o meu casamento. Só quando regressei a Palma, vários anos depois, é que voltei a encontrá-lo algumas vezes. Numa delas disse-me que tinha sido aprovado no concurso para professor nacional, não sei de quê.

Creio que foi o primeiro do grupo que faleceu, de um enfarte (1964 ou 1965). Francisco Oliver informou-me. Lembro-me que me convidou para uma missa que foi celebrada na Igreja da Ordem da Trindade, pelo eterno descanso de sua alma.

14. E finalmente eu, vosso criado, Salvador (Salvado) Escribano Hernández, de quem já vos falei.

Foi o Reverendo D. Juan Juliá quem actuou como Director Espiritual do Cursilho. A seu cargo esteve a celebração da Eucaristia e as meditações que tiveram lugar na solitária capela da localidade. Todos os dias celebrava para nós e comungávamos.

Não tivemos muito contacto com ele durante o Cursilho. Se bem me lembro era um homem que ria pela mais pequena coisa. Falava-nos com ternura, como se fosse o próprio Cristo. Lembro-me muito bem dele. Já o conhecia antes. Tinha estado em retiros anteriores com ele[13].

Eduardo Bonnín Aguilló foi o “reitor”. Jaime (Jaume) Riutort e José (Jusep) Ferragut estiveram como “professores”[14]. Não os conhecíamos antes (pelo menos eu, não). Foi Francisco Oliver quem se encarregou de nos dar informações e de nos apresentar.

Ainda recordo a alegria, o sentido de humor e a personalidade magnética de Eduardo, que, desde o primeiro momento, teve em nós agradável impacto[15]. Nos intervalos do Cursilho, Eduardo costumava contactar com todos nós. Tinha sempre uma palavra oportuna para dizer. Era (e continua a ser) um grande comunicador.

 Quanto a recursos, não abundaram. Mas não tínhamos falta de nada. Uma útil mangueira apaziguou a sede, diminuiu o calor, e ao mesmo tempo ajudou a que nos mantivéssemos minimamente asseados. A sombra e a ramagem dos pinheiros e alfarrobeiras que abundavam à volta, serviram, por mais de uma vez, de “sala de rolhos” que Eduardo, Jaime e José se esmeravam por testemunhar, e ao mesmo tempo, de mesa de refeitório para partilhar “o pão e o sal”, que nunca nos faltou. A capela da localidade acolheu a Eucaristia, as reflexões e meditações que D. Juan Juliá repartia pela manhã e noite, assim como as orações e a nossa visita diária ao Santíssimo. E não faltou uma manta acolhedora que nos cobriu durante a noite e disfarçou muito bem a dureza do piso ou as arestas dum velho catre.

Daquela experiência guardo um incalculável tesouro: seis fotografias que são como que a “impressão digital” daquele cursilho de Cala Figuera. Sempre que as olho não deixo de estremecer e voltar, emocionado, a esses dias inesquecíveis. Nelas ficaram indelevelmente gravados os seus actores e algumas das suas paisagens e circunstâncias mais relevantes. Recordação indelével duma experiência pioneira. Página de uma história que ainda não está totalmente escrita…

Ali está “o grupo dos 14”; ficam para a história os seus rostos com nomes e apelidos, prova provada de que o acontecimento ocorreu e como ocorreu. Aí se pode apreciar o Rosário e a Via-Sacra rezados através dos campos. É António Mesquida quem leva, como cruz, dois ramos secos de alfarrobeira, que, num momento de inspiração, decidiu cruzar. Aí está também a capela que abriu as suas portas para acolher a nossa oração e visitar o “Amo”[16], como costumávamos dizer. Impresso fica o bosque com as suas alfarrobeiras, pinheiros e mato. E, se se prestar atenção, poderá escutar-se o trinar dos pintassilgos e tentilhões; aí está também o seu céu azul, povoado de andorinhas, tauledes(?) e falcões, sem faltarem os assustadores abutres e corujas, durante a noite. Está o bosque, as veredas e a erva verde onde ecoaram com singular veemência as vozes de três jovens entusiasmados: Eduardo Bonnín, Jaime Riutort e José Ferragut.

Houve também os que estiveram presentes sem se deixarem ver: houve-os que nos acompanharam com as suas orações durante os dias do cursilho; ou como D. Sebastián de Son Gayá[17], nosso generoso benfeitor, que se encarregou de fornecer e transportar alimentos e bagagens na sua “carroça de molas[18] puxada por uma mula, sem faltar um único dia. E como esquecer “Papá Consuelo”[19] que, sempre pontual e de boa vontade, se encarregou de confeccionar a alimentação (guisados de carne, legumes, batatas fritas, ovos estrelados e também paio das Baleares) que, solícitos, íamos buscar à cozinha.

E em que medida, a graça de Deus e a intercessão de Maria Santíssima! Que sem sombra de dúvidas nos acompanharam em cada instante e tornaram possível coroar de êxito este sideral primeiro momento.

 

 

AMIGOS DO CURSILHO DE CALA:

Com alguns de vós mantive mais contactos que com outros; duns tive notícias; doutros não. Dei testemunho do que sei e me consta. A uns e a outros a vida nos levou por caminhos diferentes, por vezes distantes. Mas a todos recordo e estimo profundamente.

Por alguma razão, que agora começo a compreender cada vez mais e melhor, entre nós nasceu um indissolúvel vínculo, que semeou e fez germinar a Graça Divina, como pioneiro degrau duma larga e multicor cadeia de amizade que não parará enquanto não se der um Cursilho de Cristandade na Lua[20].

 

AMIGOS CURSILHISTAS, TODOS VÓS:

Hoje, a 60 anos daquele primigénio acontecimento, o mínimo que posso é elevar uma agradecida prece a Deus pelo homem que os sonhou e tornou possíveis, por Eduardo Bonnín Aguilló, seu reitor; por D. Juan Juliá, seu Director Espiritual; por José Ferragut e Jaime Riutort, seus “professores”; por Don Sebastián de Son Gayá, sua tia e sua irmã, seus benfeitores; por “Papá Consuelo”, seu simpático e diligente cozinheiro; pelos 14; e, muito especialmente, por todos aqueles leigos e sacerdotes de todas as latitudes do Mundo, que com o coração cheio de fogo e a cabeça de ideias, com uma férrea determinação, se esmeram por levar aos mais afastados a mensagem do Fundamental Cristão: QUE DEUS, EM CRISTO, NOS AMA!

Dou graças ao Altíssimo por me ter concedido o privilégio de fazer parte desta feliz aventura.

Palma de Maiorca, Espanha, 20 de Agosto de 2004.

 

De Colores!

Vosso irmão em Cristo

Salvador Escribano Hernández.

 

* * *

(Termo de autenticação[21])

O subscritor, Salvador Escribano Hernández, declara que o presente documento composto de vinte e três folhas úteis e seis fotografias[22], é autêntico e fiel aos acontecimentos que lhe tocou viver, na qualidade de participante efectivo no Cursilho de Cala Figuera Santinyí, celebrado de 20 a 23 de Agosto de 1944. Para os fins e efeitos legais a que haja lugar, assim o faço constar na cidade de Palma de Maiorca, Espanha, aos vinte dias do mês de Agosto de dois mil e quatro.

 

ATESTO.

 

___________________________

 

SALVADOR ESCRIBANO HERNÁNDEZ

 

 

 

 

 

 

Tradução de Gaspar da Silva, MCC da Diocese de Santarém, Portugal



[1] Enchido cozido que se faz com a pele de papada do porco, e que se enche com um pouco de toucinho e carnes ensanguentadas (Nota do Autor)

[2] Enchido cozido que se faz com as tripas delgadas do porco; levam a mesma carne e sangue, mas são cosidas palmo a palmo (NA)

[3] Saboroso enchido de porco para barrar o pão, semelhante à linguiça (NA)

[4] Baile de salto dos camponeses e campesinas da Catalunha e Baleares. Há um traje típico das baleares que varia de ilha para ilha, mas julgo que não se usa há vários séculos. Nas festas os que tocam zambomba usam calças atadas aos tornozelos, uma camisa às flores, antiga, um colete e calçam alpercatas. A zambomba é um instrumento musical que se faz com uma pele com um furo ao centro e, com um pau ensaboado que movem com especial habilidade; produz um som muito típico; é acompanhada de tamboril e charamelas que são uma espécie de gaita (NA).

[5] Ver, mais à frente, participante nº 8 – Francisco (Xisco) Grimalt Sancho (NA).

[6] Exame em instância superior a que deviam submeter-se os que terminavam o ensino secundário para poder concorrer a lugares públicos (confirmação de habilitações (NT adaptada da NA).

[7] Alcunha não ofensiva pela qual era conhecido o seu Pai e que havíamos tornado extensiva a ele. Em Maiorquino significa pintassilgo.

[8] Uma “colla” é um grupo em cada um tem uma actividade específica e própria: uns cantam, outros dançam e outros tocam as guitarras. Actualmente toda a gente veste de maneira normal; antigamente vestiam o traje típico. Actualmente apenas os bailadores de algumas “colla” usam o traje antigo. As mulheres usam uma peça de croché à volta da cara e um lenço às flores na cabeça. Depois uma espécie de blusa que se chama “rebosillo”, um colete sem mangas, quatro ou cinco saias, uns calções compridos que vão da cintura até aos tornozelos, o corpo adornado de jóias e umas alpercatas. Por sua vez os homens vestem uma camisa branca e, por cima, outra às flores ou de cores berrantes, calças de bombazina preta e alpercatas, também.

[9] Valentina faleceu num acidente fatal provocado por um automobilista que, irresponsavelmente se distraiu, guinou bruscamente e, sem controlo, invadiu o passeio. (NA).

[10] Cala: Pequena enseada. Porque a que confinava com o chalé em que se realizou o cursilho se chamava Cala Figuera, o Cursilho ficou com o seu nome. (NA adaptada).

[11] Poderá traduzir-se pelo nosso: pão, pão; queijo, queijo.(NT)

[12] Juntamente com “la pela es la pela” (pão, pão; queijo, queijo (?)” é uma expressão típica para indicar que os catalães são especialmente avessos a malbaratar uma só peseta. (Dai: peseteiros). Adaptado da NA.

[13] D. Juan Juliá, tanto quanto me lembro, era um jovem sacerdote (e muito jovial) com não mais de 25 anos quando foi connosco ao Cursilho de Cala. Eduardo disse-me que já faleceu, não sei quando nem em consequência de quê. Já estava aposentado, e, segundo me disse, passou os últimos dias num lar que as Irmãzinhas dos Pobres têm em Palma, muito perto da minha casa, para onde vão os sacerdotes que não podem valer-se a si próprios, ou que não têm quem cuide deles. Soube-o há pouco tempo, depois de ter falecido. Se o tivesse sabido antes, tê-lo-ia visitado. (NA).

[14] Ambos já falecidos, segundo me disse Eduardo, ainda que desconheça as circunstâncias. Creio que Jaime Riutort tem um irmão ainda vivo, mas não o conheço. Lembro-me deles de casaco e gravata, ao contrário de Eduardo que andava em mangas de camisa, como nós. Mas, acima de tudo, tenho presente a enorme boa vontade com que nos davam os rolhos e nos faziam sentir como que em nossa casa. Sempre atentos ao que fosse preciso. Não soube os seus segundos apelidos e, depois de Cala, nunca mais soube deles. (NA).

“Professor” foi a designação inicial dos rolhistas. Este título, tal como o de Reitor, eram usados por ironia… Com sentido irónico se deve entender ainda, entre nós, o título de Reitor, quando o usamos. (NT).

[15] Depois do Cursilho mantivemos contactos com Eduardo através de Paco Oliver. Por seu intermédio éramos convidados para as clausuras dos Cursilhos que continuavam a organizar-se. Lembro-me de ter assistido à clausura do Cursilho que se realizou no Mosteiro de Consolación de Porreras, situado sobre um pequeno monte. Fui com D. Juan Vidal Ollers, assistente da Acção Católica e meu Director Espiritual. Aí encontrei-me com Eduarso e mais alguns do Cursilho de Cala Figuera, cujos nomes não recordo. Lembro-me porque naquele tempo se ia de comboio para o Mosteiro e nós apanhámos o último que regressava a Felanitx. Pela nossa parte, após o cursilho, adquirimos o costume de assistir à missa e visitar o Santíssimo.

Anos depois ainda soube que os Cursilhos estavam a expandir-se noutros países, que Eduardo viajava muito, fora da Ilha, para os dar a conhecer, mas, para além disto, perdi, praticamente, todo o contacto quer com Eduardo, quer com os Cursilhos. (NA)

[16] Esta forma de tratar o Senhor foi um dos pretextos para uma intriga palaciana, em 1956, que levou à transferência do Bispo D. Juan Hervas de Palma de Maiorca para Ciudad Real. Ver HISTORIA DE LOS CURSILLOS DE CRISTIANDAD Mallorca 1944-2001, Guillermo Bibiloni, Ed Libroslibrés, Madrid 2002, pag 52/53, entre outros. (NT)

[17] Tenho a impressão de que aqueles que dizem que D. Sebastian Gayá, o padre, esteve no Cursilho de Cala, o dizem porque o confundem com Don Sebastian de Son Gayá, pela semelhança de nomes, mas que não têm qualquer parentesco entre si. O apelido Gayá, do sacerdote, é de família, enquanto que o apelativo Son Gayá vem da “masia” (extensa parcela de terreno, propriedade privada – herdade -) com aquele nome. Ambos eram da minha terra e conhecia-os muito bem. Se (o Pe. Gaya) tivesse estado em Cala, reconhecia-o imediatamente.

Sebastián de Son Gayá era um homem que teria 30 anos de idade, muito alto e magro, como se andasse sempre em jejum. Era uma pessoa demasiado boa. Já parecia um santo. Muito amável, dava a impressão de não ser capaz de fazer mal a uma formiga. Falava pausadamente fazendo ficar tranquilo quem não o estivesse.

Creio que nunca se casou. Vivia com uma irmã e uma tia que faziam o mesmo que ele: ajudar quem precisava Conversava frequentemente com ele. Fazia uns trejeitos de dor; sofria do estômago;  não sei exactamente de quê. Talvez uma úlcera ou coisa parecida. Julgo que já faleceu. Soube que estava, com sua irmã, num lar que tinham as Monjas de la Caridad em Felanitx, para pessoas com possibilidades económicas. (NA)

[18] “Carreto en muelles” em maiorquino. Traduzido para espanhol “carro de muelles” . Guardo na memória uma imagem que só não posso dizer exactamente como aconteceu. Aconteceu que, a dada altura, subimos todos para a célebre “carroça de molas”. (NA)

[19]  Também natural de Felanitx. Um homem que nos seus 65 anos conserva um permanente bom humor. Sempre feliz e disponível para prestar um favor a qualquer pessoa. Via-o com frequência pois era porteiro no Instituto. Chamávamo-lo “Papá Consuelo” por causa da filha freira, não sei de congregação, que vivia em sua casa e se chamava Consuelo. (NA)

 

[20]Na clausura do primeiro cursilho “oficial”, em Janeiro de 1949, alguém disse: “Não nos deteremos enquanto não dermos um cursilho na Lua.” Eduardo Bonnín, in EL HOMBRE DE LA DECADA DEL 40-50, artigo publicado no nº 1 de TESTIMONIO, revista do OMCC. (NT).

[21] Título da responsabilidade do tradutor.

[22] No original, publicado em Maiorca. (NT).